segunda-feira, agosto 16, 2010

Além da vida...



Ela era tudo para ele. Mais do que tudo na verdade. Por mais que tentasse era-lhe impossível transmitir por palavras todos os sentimentos que ela lhe despertava. Tão impossível como agarrar a lua com as mãos.

Conheciam-se desde sempre, desde pequenos. Lembrava-se de jogar com ela à apanhada e às escondidas [ele encontrava-a sempre com facilidade]. Lembrava-se daquele vestido amarelo que ela tanto gostava e que ele dizia que era lindo, apesar de ser a coisa mais feia que vira na vida. O seu primeiro beijo tinha sido com ela. Cresceram juntos e o sentimento que os unia, com o tempo tornou-se cada vez mais forte, cada vez mais profundo. Não demorou muito tempo até decidirem dar o grande passo. Casaram-se e uniram as suas vidas numa só, tal como a chuva se une à terra. Formavam um lindo casal. Ele sabia disso. Todos diziam que tinham sido feitos um para o outro. Ele também sabia disso. Sentia-o no mais profundo do seu ser. No mais fundo da sua alma.

Partilharam uma vida plena de alegrias. Constituíram família. Tiveram dois filhos. Um com os olhos verdes cintilantes e a doçura da mãe, outro com o nariz e o temperamento forte do pai. Educaram-nos com todo o amor e carinho que tinham.

Envelheceram juntos, lado a lado. O amor que os unira na juventude continuava lá. Mais calmo, mais pacífico, mas cada dia mais profundo. Já não eram precisas palavras para mostrarem o que sentiam. Um olhar bastava. Uma festa no rosto. E como ele gostava de lhe tocar no rosto. Sentir as marcas do tempo expressas na sua face. Marcas essas que ele tinha visto surgirem uma a uma e que contavam a história das suas vidas. Uma prova do amor que os unia. Do tempo que tinham partilhado. Amava as suas rugas tanto como tinha amado a sua pele suave como seda. Amava o seu cabelo, agora grisalho, como tinha amado o seu cabelo loiro e farto na juventude. Mentira. Amava-os ainda mais. Amava-a ainda mais.

Tinham tanto para viver ainda. Ele estava certo disso. Até aquele dia fatídico chegar. Não podia acreditar. Não queria aceitar. Ela não podia partir. Não o podia deixar sozinho. Simplesmente não podia. Rezava todas as noites. Todas. Com toda a fé que possuía. Mas as suas preces não eram atendidas.

Ela definhava pouco a pouco. O seu corpo ia ficando cada vez mais magro, escanzelado, debilitado. Chegou o dia em que já não se conseguia levantar da cama de tão fraca que estava. Dormia quase todo o dia devido ao efeito dos comprimidos que visavam aplacar-lhe as dores que a doença lhe causava. Já não se lembrava da última vez que tinham conversado e que ela lhe tinha respondido lucidamente. O dia estava perto. Cada vez mais perto. Ele sabia-o, mas afastava esse pensamento. Talvez, só talvez, se não pensasse nele, ele não chegasse. Era uma hipótese remota, mas valia a pena tentar. Ela não o podia abandonar. Não agora. Não antes dele. Sem ela não era nada. Não passava de um corpo vazio, já que ela era o seu coração. Com ela tudo era belo, risonho, radiante. Sem ela tudo era feio, triste e escuro. Não podia viver sem a sua luz. Não podia viver sem a sua vida.

Mas ela partiu dias mais tarde. Partiu sem se despedir deixando-lhe um enorme vazio no peito. Ele não chorou. Nem isso conseguiu fazer. Todas as suas energias, todas as suas forças estavam concentradas em manter o seu corpo vivo. Não tinha energia nem para deixar as lágrimas caírem.

Passava os dias a pensar nela desde que se levantava até ao deitar. Até em sonhos ela lhe aparecia. Todos os dias ele visitava os lugares que eram importantes e especiais para eles. O rio onde tantas vezes fizeram piqueniques. A estrada rodeada por árvores onde andaram de bicicleta na juventude e onde passeavam de mãos dadas na velhice. O prado onde se deitavam a observar o céu estrelado à noite. O lago onde davam de comer aos cisnes. Culminando sempre no mesmo sítio. O local da última morada dela. Ajoelhava-se e lá ficava horas a conversar com ela na esperança que lhe respondesse. Todos os dias lia as cartas de amor que tinham trocado e que guardara religiosamente numa pequena caixinha de madeira. Todos os dias o mesmo percurso. Todos os dias o mesmo ritual. As lembranças alimentavam-lhe a alma, mas a tristeza profunda como o mais fundo abismo oceânico continuava lá a consumi-lo. A definhar-lhe o corpo. A cada dia a sua fragilidade aumentava. A cada dia sentia-se mais fraco, mas não interessava. Tinha que ir falar com ela. Tinha que ir ali para estar com ela.

Mas agora… Agora não se lembrava como tinha chegado ali. Estava na igreja onde se casara. A igreja estava cheia de pessoas vestidas de negro. Cada uma com o seu lenço branco na mão a enxugar as lágrimas que caíam incessantemente. “Quem teria morrido?”. Não sabia, não se conseguia lembrar. Na última memória que tinha estava deitado na sua cama. Nas suas mãos tinha o retrato dela e adormeceu a olhar para ele.

Olhou em volta e pensou que a pessoa que morrera devia ser muito querida por todos. Os seus filhos estavam lá, na fila da frente. Choravam copiosamente abraçados um ao outro. “Seria alguém da família?”. Dirigiu-se ao altar, em direcção ao caixão. Era ele. Era ele que estava no caixão. Ele tinha morrido. “Eu morri?”. Aquele era o seu funeral. As pessoas estavam a chorar por ele. As lágrimas dos filhos eram para ele.

Sentiu-se desnorteado. Não sabia o que fazer, para onde ir. Se é que tinha de ir para algum lado. Estava sozinho. De novo.

Voltou-se e olhou para a porta da igreja. Viu-a. Era ela. Ela tinha-o vindo buscar. Ele devia saber que ela viria. Que não o deixaria sozinho. Com um sorriso dirigiu-se a ela. Estava linda como sempre. Os seus olhos verdes brilhantes e o seu sorriso radioso. Tocou-lhe no rosto e sentiu as marcas do tempo que tanto gostava. Com o olhar disse “Amo-te” e ela respondeu “Para sempre”. Não foram precisas palavras. Há muito tempo que estas já não eram necessárias. Deram as mãos e partiram juntos em direcção à luz. Em direcção à eternidade, provando que um grande e verdadeiro amor ultrapassa todas as barreiras. Até a da morte.

Inspirado em

Clair de Lune - Debussy


2 comentários:

Sofia disse...

Fizeste-me chorar porra. Está lindo, lindo. Eu não consigo sequer começar a imaginar a dor de perder a pessoa que amámos a vida toda, a pessoa com quem nos construímos... deve ser assim como tu dizes.... e eu acredito que a saudade e a solidão também matam... Beijinho

Artemisa disse...

Sofia...

Ainda bem que gostaste. :)

Bjx